domingo, 27 de março de 2011

curiosidades

Como se não bastasse todo o conflito íntimo, Clarice tinha plena consciência das dificuldades financeiras que sofria, o que lhe causava raiva, não maior que a raiva que sentiu, ao saber do câncer que a consumia. Quando soube confirmada a doença, pediu à Olga Borelli, sua amiga que escrevesse:
- “Dentro do mais interior de minha casa morro eu neste fim-de-ano exausta. Até fim-de-ano eu tive. Mas como se verá – não correu sangue. Bem que eu queria que corresse, e do mais brilhoso e da mais espalhafatosa faísca de fogo só para que fique provado em veia grossa minha foi tão de súbito lancetada. Chorei de raiva, raiva contra mim mesma. Me detestei por ser tão ingênua. Minha desordem criadora: do caos nascem as estrelas. Mas esta estrela, a do fim-de-ano, era de carne, pensava, e, a cada talho, doía…”(Clarice Lispector)

Affonso Romano de Sant'Anna participa de mesa que homenageia Clarice

Affonso Romano de Sant'Anna participa de mesa que homenageia Clarice

Clarice após a morte

 

1978
Um sopro de vida
Escrever para aprender, para entender a falta de definição da vida, para salvar a realidade. "Não consigo imaginar uma vida sem a arte de escrever ou de pintar ou de fazer música", nos diz o personagem Autor, ao retratar, no livro que escreve os seus "rápidos vislumbres" e os da personagem Angela Pralini, a sua tentativa de ser dois. O livro se constrói a cada anotação do Autor no seu diário e no diário que ele faz Angela escrever. 
1978
Quase de verdade
O cachorro Ulisses pede para sua dona Clarice escrever o que ele viu no quintal da vizinha. Numa de suas fugas de casa, Ulisses, que era muito peludo e tinha um olhar observador de gente de verdade, descobre que da união entre o sentimento de inveja e as idéias de más companhias só sai fruto ruim. 
 






   

Clarice Lispector: comunidade Clarice Lispector

Clarice Lispector: comunidade Clarice Lispector: "http://www.olivreiro.com.br/comunidade/151-clarice-lispector"

sábado, 19 de março de 2011

Citações de Clarice...

"Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar essa pessoa de nossos sonhos e abraçá-la." 
 
"O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo."
 
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro... "
 
" É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo. "
 
"Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar essa pessoa de nossos sonhos e abraçá-la. "
 
"Fique de vez em quando só, senão será submergido. Até o amor excessivo pode submergir uma pessoa. "
 
"Os factos são sonoros. O que importa são os silêncios por trás deles. "
 
"Que ninguém se engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho. "
 
"E ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a solidão. " 

sexta-feira, 18 de março de 2011

A Repartição dos Pães

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado,ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Pão é amor entre estranhos.
Que ousa desvelar as profundezas de sua alma em seus escritos,  costumo evitar declarações excessivamente íntimas nas entrevistas que concedo, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publiqui no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato bastante acurado, ainda que parcial. Isto porque  por inteiro só os verdadeiramente íntimos conhecem e, ainda assim, com detalhes ciosamente protegidos por zonas de sombra. A verdade é que a  que reconheço com espanto ser um mistério para mim mesma, continuará sendo um mistério para seus admiradores, ainda que os textos confessionais aqui coligidos possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.